A história decorre numa ilha, onde um casal – Liv Ullmann (recém casada, na altura, com Bergman) e Max Von Sydow – vive, praticamente isolado. Ao longo do filme vamos conhecendo várias personagens circenses e vampíricas que accionam e detonam os fantasmas de Von Sydow. Liv Ullman interpreta Alma – nome igual ao da enfermeira de Persona -, uma (mais ou menos) viúva que nos conta a história do marido ou dela. Já Johan, a personagem masculina, é um pintor que se reclusa com a mulher naquela ilha, amedrontado com os mesmos fantasmas que propulsionam a sua veia criadora. John e Alma nunca dormem durante as cinco e as sete da manhã – período em que se insere a hora do lobo, supostamente o momento do dia em que, devido a atracção da lua, mais gente nasce/morre e que é também a altura mais propícia para a prática de magia – e o cumprimento deste ritual torna a mente de Johan numa entidade cada vez mais instável.
Crítica
Diante a profunda perplexidade de mais um filme do graestre sueco, me vem a pergunta fundamental: seríamos mesmo capazes de conseguir exprimir em palavras as múltiplas e infinitas sensações que nos é invadida após assistirmos algum filme do Bergman? E o que dizer daquilo que é indizível, cujas palavras não conseguem se unir (quanto menos se perder) para dar conta de um emaranhado confuso e intenso de tormentos psicológicos, tão abstratos e dispersos quantos os nossos pensamentos, cuja expressão só se faz presente pela total desconstrução da linguagem, da quebra de paradigmas do início, meio e fim? Se teorizar sobre cinema já se faz uma arte difícil, o que dizer então quando se trata de teorizar sobre a filmografia do maior cineasta vivo (salvo controversas de gostos e contragostos, coisa que não devemos questionar)? Para falar a verdade, o nosso querido Bergman amedronta, não porque seus filmes possam soar hermético demais para um público que não costuma a assistir cinema pela arte em si, mas sim porque são realmente raros os cineastas que conseguem expressar, se não em palavras, mas em imagens, o que nem mesmo conseguimos refletir.
Talvez deixar de preocupar-se em entender e permitir-se apenas sentir seja realmente o nosso grande consolo deixado pela imortal Clarice Lispector. Mas não é o bastante para aqueles que se angustiam pela busca de um sentido, pela busca da palavra exata que possa exprimir o sublime de uma obra de arte. Nesse sentido, a angústia de um [bom] apreciador de cinema (note que não uso o termo crítico pela falta de um termo mais condizente) chega a lembrar a angústia psicológica do artista, não o artista Johan Borg propriamente dito, mas do artista (no sentido nato da palavra) em geral. A angústia do fazer literário de um escritor, em que o conceito de beleza, harmonia e perfeição sempre estiveram marcadamente regidos por um universo de assombro e fascinação não deve ser comparada à angústia do personagem Joahn Borg – magistralmente interpretado pelo grande Max von Sydow - unicamente porque sentimentos são abstratos demais para serem postos em uma balança com o fim de serem comparados.
Mas se pudermos apontar alguma temática abordada em A Hora do Lobo - aquela trepidante hora que antecede o amanhecer; em que vários enfermos morrem, mas, também, em que muitos bebês nascem – esta seria o enigma da criação artística. No filme, o pintor que se refugia com sua linda e dedicada mulher chamada Alma (interpretada por Liv Ullman, na época, grávida da filha Linn Ullmann, fruto da união com Bergman) e que passa a ser perseguido por fantasmas psíquicos (e antropófagos) diz, num jantar (felliniano) promovido pelos seus próprios fantasmas, que, em sua criação, não há nada evidente, fora a obrigação. "Preciso apenas considerar a completa falta de importância de arte no mundo dos homens e volto para a Terra rudemente. Mas a compulsão persiste", nos fala Borg. Nas palavras do criador, Bergman nos diz que "Borg se defronta com um "é preciso", uma dor que nunca o abandona, como uma dor de dente. (...) Não se trata portanto aqui de um Dom vindo de cima. Não há relação extraterrena em tudo isto. Só há, nisto , uma doença, uma perversão, um fenômeno. Ele vê a situação de uma forma muito brutal. (...) Fala-se aqui do artista como um eleito. De qualquer forma, sei que quando escrevi esta cena, quis exprimir o sofrimento, o seu sofrimento."
Os conflitos internos de Johan, os demônios que eles representam, manifestam-se em suas pinturas através de retratos surreais e impressionistas de uma sociedade sufocante que sempre o perseguiu: as máscaras que camuflam a identidade das pessoas são expressadas por um quadro em que uma mulher, ao jogar seu chapéu, acabar por jogar sua face junto; os homossexuais; o diretor da escola, os carnívoros, os insetos e a figura de um homem-pássaro, cujo bico também lhe esconde um possível parentesco com o papagaio de "A Flauta Mágica" (obra de Mozart homenageada na Hora do Lobo e que, mais tarde, vai servir de inspiração a um musical com o mesmo nome); tudo isso compõe um universo delirante, já vivenciado pelo próprio Bergman quando ainda era um garoto que sonhava em ser cineasta. E aqui convém um destaque especial para a seqüência em que Borg mata um garotinho. "Nesta cena, trata-se na verdade, de exprimir o medo intenso que sente Joahn Borg de ser mordido. A criança é um dos demônios. Joahn Borg não pode discernir se o que aconteceu é sonho ou realidade, se ele atingiu mortalmente um garotinho vivo ou se tudo isto só existe na sua imaginação. A fronteira entre o sonho e a realidade está inteiramente apagada", revela Ingmar Bergman, que só passou a libertar-se de seus "demônios" quando a superestrutura religiosa imposta pelo catolicismo ortodoxo de seu pai foi abandonada mais tarde pelo grande cineasta sueco.
Porém, Bergman é conhecido também por ser imprevisível, e não podia ser diferente em "A Hora do Lobo". A quebra da expectativa de estarmos diante de um filme essencialmente autobiográfico é feita logo no início do filme, já que podemos escutar Bergman a conversar com os técnicos. É um filme, então, o que estar por vir. Utilizando-se de um recurso muito próprio do teatro (leia-se parábase), Bergman utiliza fórmula semelhante ao que foi usada por Godard em Acossado, quando Belmondo vira-se de vez em quando para o público para comentar a ação. Liv Ullman várias vezes estar a conversar com o espectador. Eram realmente poucos os filmes que traziam tal técnica, o que com certeza pode explicar tanta polêmica.
Os pavores existenciais do angustiado pintor são palpáveis, reais. Uma possível esquizofrenia do mestre é descartada porque, com o passar do tempo, a dedicada Alma também se torna a vítima de suas alucinações. A teoria que sustentava de que pessoas velhas que moram juntas por muito tempo começam a se parecer umas com as outras, se concretizam e ela também visualiza, inerte, os tormentos do marido, que assim como Tamino de "A Flauta Mágica", só se acalma quando o interminável minuto de uma noite escura cede lugar a tranqüilidade de um novo e ensolarado dia.
O limite foi atingido. Finalmente eu lhes agradeço. O vidro está despedaçado, mas o que se reflete nos cacos? Podem me dizer isso?", pergunta Borg quando encontra a luz que tanto procurava. Quem pode dizer? E aqui talvez cabe uma humilde reflexão sobre a arte. Espantamo-nos à medida que conhecemos um pouco mais sobre nós mesmos, sobre o que nos impulsiona e nos mantém vivos. Para um escritor, talvez o ato de "escrever" seja comprometer-se intelectualmente; ou seja, assumir antes um compromisso com você mesmo diante daquilo que você pensa sobre o mundo. Não somente isso. "Escrever é conhecer-se"; como dizia Clarice Lispector, "é lembrar-se do que nunca existiu"; sem se preocupar com o rótulo que ela possa vir a ter, pois "o hermetismo depende mais do leitor do que do próprio autor", já dia João Cabral de Melo Neto.
E que bom que Bergman ajudou a nos conhecer também.
Fonte - Cinema Com Rapadura
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