Salmo Vermelho, como a maior parte dos filmes de Jancsó da época, baseia-se em eventos da história húngara. Aqui trata-se de uma revolta de camponeses em 1890. Na história, um grupo de camponeses demanda do proprietário das terras em que vivem alguns direitos básicos, e todos os poderes e seus representantes - o conde proprietário das terras, o clero e o exército - tentam dissuadir os revoltosos, mas as tentativas resultam infrutíferas. Em seu ápice, a revolta assume a forma de uma celebração: os camponeses cantam e dançam em torno de uma árvore, símbolo da chegada da primavera e da fertilidade, e novas canções adquirem vida: os salmos vermelhos.
Crítica
Dois Cinemas na Hungria
Há imagens no mundo que não são de se acreditar. De verdade mesmo. E no cinema também, principalmente porque existem imagens como as que vi dias atrás, em dois filmes que, sinceramente, não se encontram palavras (e estas mesmas são nulas, assim como são inúteis quando tentam expressar sentimentos) para que se consiga acreditar ou não acreditar na natureza impressa por aquelas epifanias em movimento, de uma poesia absurda, dentro da concepção dos sentidos no ser.
Falo num filme chamado Condenação / Kárhozat, 1988, do diretor húngaro Bela Tarr, e em outro, chamado O Salmo Vermelho / Még Kér a Nép, 1972, do também húngaro Miklos Jancsó. Estes dois filmes possuem uma direção de câmera simplesmente fascinante, seguindo parâmetros puramente poéticos, que constroem, "desenhando" com as imagens, o espaço da ação, da clareza, da coesão que emana do próprio cenário que, em nenhum momento, parece ser um cenário feito para ser fotografado pela câmera.
Andrei Tarkovsky dizia que a montagem no cinema deveria obedecer uma cadeia lógica de combinações dos ritmos presentes nas diferentes imagens captadas pela câmera, dando, assim, uma unidade e fluidez ao filme, dotando-lhe um espírito e uma vida, como se fosse uma pessoa a se mover e respirar. Bela Tarr, em Condenação, radicalizou essa máxima do cineasta russo, praticamente conseguindo construir um filme todo em cima de um único ritmo: o da chuva. A chuva como objeto cênico, indissociável à imagem, uma banda sonora que não está ali apenas para um efeito estético. A chuva, a umidade(outra influência de Tarkovsky em Tarr), estão presentes no roteiro como alusões ao passado, à lentidão em esquecer, e da dor aguda de sempre lembrar do que se sente. Mas a chuva é também opressão dentro das imagens, donas de uma leveza inacreditável e de uma profundidade excepcionalmente objetiva, mas que, não curiosamente, não cessa em si.
O olhar de Tarr é lento, mas sem peso o que reforça essa objetividade que não produz imagens simples, mas que conseguem passar, pela insistência física num único plano, sem dificuldades, a significação que certos objetos têm em cena. A composição aqui é levada a um grau elevado de importância no âmbito da representação na imagem. Sim, pois como interpretar aquele enquadramento inicial, quando a câmera move-se lentamente de fora para dentro do cenário, focalizando, sem cortes, um homem de costas enquanto elementos da imagem focada no enquadramento primeiro, mesclam-se dando origem a uma imagem híbrida que evoca e alerta para uma atenção especial ao som, no decorrer do filme?
Aliás, é o som da chuva - assim como o tempo dela - que é precioso nessa poesia imagética: o tempo: numa cena, há um travelling tratando a chuva quase como fumaça dispersa, ligeira, e a câmera movendo-se para a direta, encontrando um homem, o protagonista, que parece esperar o simples posionamento final do enquadramento para ir em direção às gotas d´água, feitas penumbra, ilusão. Noutro momento, outro travelling: uma parede tem sua representação na imagem, enquanto a chuva, novamente chega e vai tomando, quase aos poucos, a sua totalidade; quando esta parede está com sua superfície imersa em água, a câmera desloca-se novamente para a direita, nesse movimento tranquilo, rítmico, passando por objetos e pessoas que parecem deslumbrarem-se com a chuva, de rostos normais, meio enfadonhos... e esta câmera continua seu percurso, entendendo a umidade da cena, o peso contrastante da chuva, até se deter numa outra parede, no outro extremo espacial da imagem, do cenário. Essa parede permanece seca, e Tarr possibilida a prática do ensinamento de Tarkovsky, sem um único corte: a água chega, deslizando de cima para baixo, nessa parede. É o tempo da chuva impresso no cinema. Mas não só esse tempo. O tempo do ser, do mover, do compreender e do sentir-se vivo. É o tempo do ser humano tal como ele deveria captar e entender.
O tempo diegético da imagem enquanto reprodutora de uma realidade que se cria sob o olhar da câmera, parece ser uma fixação explícita em O Salmo Vermelho, de Jancsó. Partindo de uma situação tensa e triste, o filme começa a traçar paralelos com a música, em seu ritmo também contínuo, impassível e liso. O uso da música é um toque na personalidade dos camponeses socialistas que protagonizam o filme: ela os firma ainda mais no seu chão, na sua terra, nas idéias, criando momentos de interlúdios musicais não deslocados e ditados pela ação. A ação pede determinada canção, que executada dentro da própria composição(e não acima dela), estreita os laços entre os personagens(que, vale ressaltar, são conhecidos pelos seus rostos, apenas) e caracterizam seu pensar.
A construção de movimentos de câmera obedece uma composição que jamais está estática: são blocos de imagens sem cortes, com as lentes voltando-se desproporcionalmente dentro do espaço real, compondo-o como ele é, reproduzindo-o aos olhos, alcançando os personagens conforme eles invadem o quadro e os acompanhando em seguida, até um outro personagem surgir e tomar para si a atenção do olho da câmera, que vai registrar os seus gestos e olhares, sempre num misto de plano incerto, meio médio. Esta estrutura faz-nos remeter novamente a Tarkovsky, quanto à montagem, que não deve ter dado muito trabalho a Janscó, já que as imagens capturadas possuem um mesmo e obssessivo ritmo.
O tempo da forma pela qual é retratado em O Salmo Vermelho difere-se enormemente do retratado em Condenação: em Jancsó, o tempo é construído na câmera, nos movimentos que ressaltam aquele certo aspecto de sonho e fábula meio que sonhada por um camponês socialista do próprio filme, dada a interpretação "distante" dos seus atores, e é determinado pela movimentações de seres e de objetos; ao passo de que o tempo, em Bela Tarr, desenvolve-se no nível das suas imagens por meio da montagem (sim, pois o filme de Tarr, apesar da edificação de um espaço real, não é e nem trata-se de apenas um espaço como em Jancsó, mas de vários numa mesma cidade), que "encaixa" precisamente os fluxos de tempos semelhantes em imagens de mesma natureza, mas de diferentes composições.
São reflexões de imagens inesquecíveis e inacreditáveis, com seus andamentos espirituais, finos, lisos e calmos, flutuantes apesar das pesadas chuvas que caem num preto e branco de poesia, e da perseguição e morte de camponeses socialistas. Dois cinemas para se ver e conhecer.
por Ranieri Brandão do MKO
Premiações
- Indicado ao Palma de ouro em 1972
- Melhor Diretor no Festival de Cinema de Cannes em 1972
(Postado por mfcorrea do MKO)
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Meg.Ker.A.Nep.(aka.Red.Psalm).(1972).DVDRip.XviD-by.crasus.avi
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